No quintal de uma casa antiga, um rapaz costuma ficar sentado na cadeira de balanço enquanto pita. Todos os dias após terminar seus afazeres ele faz um chá e se senta lá. Ao seu lado, uma doguinha preta com uma manchinha branca na testa. O som ambiente fica por conta dos sabiás de dia e dos gatos e morcegos à noite.
Por um acaso esse rapaz sou eu e, por muito tempo, eu achei que esse hábito era o mais próximo de ócio que eu chegava. O problema é que, pra além dos morcegos, gatos e pássaros, existe um som que se sobrepõe a todos esses, meus pensamentos.
Nos últimos tempos eu não vinha conseguindo ficar no meu cantinho no quintal sem estar ouvindo nada, a exemplo de um livro ou um vídeo qualquer no YouTube. Eu não podia baixar a guarda que meus pensamentos, em sua maioria negativos, vinham me atormentar.
E isso é uma merda foda já que eu sempre fui um cara solitário e gostava disso. Por um tempo foi um problema, mas eu me acostumei com minha companhia. Acontece que minha companhia não era mais tão agradável quanto antes.
E aí eu te pergunto, o que fazer?
A gente vive na sociedade do cansaço, como nomeou Byung-Chul Han, que por muitas vezes pode ser lida como "inimiga do ócio". Por outro lado, eu sempre fui bem amigo do ócio, até digo que meu sonho é ser aposentado pra não precisar mais trabalhar e poder viver inteiramente dedicado à gloriosa ociosidade.
Só que de uns anos pra cá isso vem mudando. Não minha vontade de aposentar, isso segue firme. Mas minha relação com o ócio. Ou pelo menos eu achei que estava mudando, então fui buscar no google a definição de "ócio".
"1. Falta de ocupação, inação, ociosidade."
Bom, considerando que tenho um trabalho que suga minha alma, que faço academia seis dias por semana e ainda estudo algumas horas por dia pra concurso, acho que essa primeira definição não tá muito condizente com minha realidade. Definitivamente "falta de ocupação" não é comigo.
"2. Cessação do trabalho, folga, repouso, quietação”.
Esse segundo significado já fez um pouco mais de sentido com aquele hábito que narrei no início. De fato, o que eu faço todos os dias se encaixa como uma situação ociosa, mas não tem sido confortável o suficiente pra eu chamar de "quietação" com tantos pensamentos intrusivos me apurrinhando.
Então se eu não poderia ficar a sós com meus pensamentos precisei arrumar soluções. Não dava pra ser só leitura ou estudo porque eu preciso me concentrar pra essas atividades, e com o pensamento agitado é inviável.
O jeito era voltar a praticar algum esporte. Em resumo, dei meus pulos e comecei a treinar jiu-jítsu! O que tem sido um bálsamo pra minha cabeça ansiosa.
E aí voltamos pra questão do ócio. Me enfiar em mais uma atividade pode ser considerado ócio? Vamos dar outra olhada nos significados do ócio.
“3. [figurado] trabalho leve, agradável.”
Eu sempre amei praticar lutas de chão, fiz luta-livre esportiva e olímpica desde os catorze anos. Entretanto a vida adulta aconteceu e eu não treinava nada disso desde 2017, pelo menos.
Acho que pra podermos atingir certos resultados precisamos de algumas "alavancas" ou "condicionantes". Digo isso porque agora, praticando quase cinco horas a mais de exercício físico durante a semana, eu tô me sentindo muito mais em paz nos momentos em que tô fazendo o que descrevi no primeiro parágrafo.
Essa parada de exercício vicia, né?
Fala-se muito sobre buscar um equilíbrio, entre corpo e mente também, e eu vinha exercitando minha mente muito mais do que meu corpo. Tô buscando uma explicação filosófica pra algo que possa ser químico, mas como eu não entendo nada dessas paradas de endorfina etc e tal prefiro especular mesmo.
O importante é: tava falando com minha terapeuta essa semana que eu tô me sentindo muito feliz. Tenho me sentido em paz, principalmente quando tô sozinho com meus pensamentos. E consegui externalizar que se melhorei foi por mérito próprio e isso me deixou orgulhoso de mim.
E pra um cara que tem enorme dificuldade em reconhecer merecimento e mérito próprio ter dito isso depois de meses de terapia foi algo que deixou minha terapeuta orgulhosa também. No fim das contas foi uma sucessão de orgulhos nessa sessão. Pelo menos até a metade pois depois ela botou "AmarElo" do Emicida pra ouvirmos e refletirmos e não teve jeito, chorei (de novo) feito um condenado.
O engraçado foi que nesse dia chorei pelo menos quatro vezes, e todas as vezes por motivos alegres. As demais vezes foram lendo "A casa no mar cerúleo" do TJ Klune, o livro mais fofo que li esse ano! Sério, quem nunca leu algo que fala sobre preconceito e a quebra destes de uma forma emocionante, por favor, leia.
Em resumo, Linus Baker, o protagonista, é um assistente social de quarenta anos solitário que trabalha pra um instituto do governo fiscalizando orfanatos pra "crianças mágicas" (o que eu facilmente li como uma alegoria pra PCDs e outras populações marginalizadas). Ele é designado pra uma inspeção em um orfanato de crianças de "alto grau de dificuldade" e foi escolhido por ser sempre muito imparcial e minucioso nos seus relatórios.
A gente acompanha esse cara tendo seus preconceitos rompidos através do contato com cada uma das crianças do orfanato que, só por curiosidade, tratam-se de uma gnoma, uma sprite, uma serpe, um transmorfo, uma água-viva senciente e o anticristo em forma de guri.
Chegou uma parte desse livro que eu simplesmente chorava pelo menos uma vez em cada capítulo, bicho, tu tens noção disso? Juro, nunca li algo tão tão fofinho na minha vida (que minha memória carcumida pelas drogas deixa lembrar, ao menos).
Portanto, pro cara que teve o pior ano de sua vida em 2023 e até agora a pouco chorava por motivos em sua maioria tristes, agora eu sigo chorando bastante mas por motivos bons! Um grande chorão, mas um chorão feliz, ok?
Hoje eu posso fazer meu chá mate, sentar na cadeira de balanço com a Ciri deitadinha do lado, ligar minha caixinha de som, botar um jazz brasileiro como Amaro Freitas pra tocar e deixar o tempo passar até a hora de dormir sem me preocupar com meus pensamentos. Se é só uma fase boa ou realmente encontrei uma estabilidade não sei, eu só tô curtindo essa, agora sim, quietação.
E pra você que leu até aqui, meu forte abraço!
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