Muita coisa mudou pra mim nesse último ano. Voltei enfim a conviver em sociedade de forma minimamente mais tranquila a partir de março, estabeleci muitos vínculos novos de amizade, cumprimentei pessoas com beijo no rosto e disse “prazer” depois de dois anos vivendo isolado. Contudo, hoje penso que algo a pesar sobre meus ombros é a solidão.
A solidão tem sido um tema que trato muito em terapia, várias e várias sessões, e mais recentemente passei a ler livros e artigos científicos sobre isso. Até mesmo as músicas que ouço (MPB, rap, samba e outros ritmos brasileiros) têm me evocado esse sentimento.
Um tempo desse tava num bar com um amigo e um grupo de samba se apresentava. Ao ouvir as músicas com temas de amor e relacionamentos, notei não ter sido tocado por elas como em outros tempos. Percebi nesse dia que há anos não me apaixonava por alguém. E olha que convivo e sempre conheço muita gente bonita e interessante, entretanto desde 2018 pra cá sinto que nunca mais tive esses sentimentos românticos despertados.
Mais uma coisa que evocou a sensação de solidão.
Neste mesmo bar assisti a alguns jogos do Brasil na Copa. Sempre acompanhado de um ou outro amigo, marcando ou simplesmente por acaso. Por mais que eu compartilhasse as mesmas intenções e a torcida de todas as pessoas presentes no bar, algo ali me diferenciava de todos. Com as conversas paralelas e a gritaria em lances agudos, eu não conseguia entender o quê o Galvão tinha narrado e, como sou cego, por consequência não entendia o que acontecia nos jogos até que alguém me contasse de forma voluntária ou após uma pergunta minha. “Só isso” já serviu pra despertar mais uma vez o sentimento de solidão por não estar em comunhão com toda aquela gente.
Acho que em muitas situações que vivi esse ano, a falta total ou parcial de acessibilidade me fez sentir essa solidão com certa frequência, ao ponto de eu pensar as vezes que talvez esse ano eu esteja mais solitário do que nos anos de isolamento.
Nos anos de isolamento, o relatório semanal de uso do meu smartphone apontava que eu passava entre dez e doze horas do dia o utilizando. Agora o relatório aponta que uso o celular em média apenas cinco horas por dia. Nos anos de isolamento, minhas frustrações eram basicamente a ausência de audiodescrição nas mídias ou a péssima usabilidade de plataformas com leitor de tela. Agora passando mais tempo fora de casa, o mundo me lembra que ele é inacessível para que pessoas com deficiência como eu convivam em sociedade.
E o pior de tudo, dentre todas as barreiras de acessibilidade, a qual mais me deparo é, com certeza, a atitudinal. As atitudes das pessoas sem deficiência que encontro por aí, no trabalho, no bar, no samba, seja onde for, são sempre o que mais me fazem pensar que a abençoada da PCD tá muito é fodida.
É impressionante como muita gente que me vê nos bares e casas noturnas por aí aparentemente interpretam esse evento como se o que estivesse ali não fosse uma pessoa, mas um unicórnio ou outra criatura mitológica semelhante. Eu adoraria ser recebido com alegria nos lugares que chego, mas por tudo o que sou, não só porque porto uma bengala e uso óculos escuros. Por mais que as pessoas que sentem-se interessadas em falar comigo supostamente estejam contentes em me ver nesses ambientes, infelizmente se não fosse por uma única característica minha que, não se engane, eu gosto e tenho orgulho, mas nem de longe é a única que me define, eu passaria despercebido.
Essas coisas me afastam de quem as reproduz. E mais uma vez volto a me sentir solitário nas situações e lugares. O que me faz pensar muita gente pode começar a se isolar involuntariamente porque não se sente bem-vinda ou pertencente aos ambientes. Esse isolamento faço questão de salientar que não é intencional, é forçado à pessoas “diferentes” pois constantemente somos lembradas que os lugares onde estamos não é para nós.
Como disse, andei lendo muitos artigos científicos sobre solidão, lembra? Um estudo do Instituto Superior Miguel Torga (ISMT) de Coimbra, publicado em 2017, aponta que a solidão, por si só, representa um fator de risco à saúde comparável ao tabagismo moderado (15 cigarros por dia), sendo pior do que a inatividade física. Além disso, também é comum que pessoas solitárias desenvolvam maus hábitos, como má alimentação, alcoolismo, tabagismo e coisas do tipo, o que só piora tudo, né? Esse mesmo estudo aponta que a chance de sobrevivência de uma pessoa com vínculos sociais estabelecidos é de 50% maior do que a de pessoas com vínculos sociais insuficientes. E, como você pode imaginar, os idosos são quem mais sofrem com isso tudo.
Muitas dessas coisas que a maioria das pessoas só experiencia na velhice, as pessoas com deficiência experimentam desde os seus primeiros anos de vida ou desde que adquirem suas deficiências. E, infelizmente, um dado alarmante obtido pelo SUS em 2016, pouco difundido, é que 49% das pessoas que tentaram suicídio possuíam uma ou mais deficiências.
E, cá entre nós, eu não tenho pensamentos suicidas, nem nada. Entretanto, como pessoa ansiosa que sou, fico pensando: se as coisas não mudarem, talvez seja um destino triste que me aguarda. Mesmo não sendo eu,, mas e se for alguém assim como eu? Não é assustador?
E se já é assim hoje, imagina só se escolas especiais e segregadoras voltassem à pauta? Acredito muito que todo esse auê feito pelas pessoas sem deficiência ao interagirem com PCDs é apenas porque a imensa maioria de nós não é vista por aí. Se as pessoas na sociedade como um todo tivessem sido habituadas à diversidade desde cedo, muito desses problemas enfrentados pelos grupos marginalizados, com certeza, seriam mitigados.
E tudo isso pra dizer que me sinto só e sinto saudade de me apaixonar, veja só você.
O que andei consumindo:
Enfim baixei o aplicativo da Biblioteca digital de SP, BibliOn, e tô até lendo bastante coisa, apesar de o app não funcionar bem com leitor de tela.
Eu li: Narrenturm do Andrzej Sapkowski e tradução direto do polonês da Olga Baginska-Shinzato. Primeiro livro da trilogia de ficção histórica sobre as Guerras Hussitas. Devorei!
Outro que devorei foi O Castelo Animado da Diana Wynne Jones e tradução de Raquel Zampil, foi a coisa mais fofinha que li esse ano!
E nesse momento estou finalizando a leitura de Tudo sobre o amor: novas perspectivas da Bell Hooks e tradução de Stephanie Borges. Já queria esse livro dela mas nunca tinha encontrado promoção. A Bell é demais!
Talvez eu escreva uma resenha de algum desses livros, veremos. Você já leu algum deles?
No YouTube tenho assistido aos "vídeo-ensaios" do Ora Thiago, e agora ele tá começando a legendar os vídeos pra torná-los mais acessíveis. Vale conferir!
Passei mais de mês com o pc na assistência, mas agora se tudo der certo pretendo manter uma periodicidade aqui na news, a princípio mensal.
Qualquer coisa deem um alô, seria bom ouvir a opinião de vocês acerca da solidão.
Abraços!
amigo, vc escreve tão bem. falar de um assunto tão complexo e delicado, desse jeito direto e bonito, não é fácil. vida longa a newsletter!
e grande abraço. viver é uma loucura.
Eu adorei essa edição. Ando pensando bastante em solidão também, é sempre um nó na minha cabeça o impulso de tentar me apaixonar de novo e dar de cara com a porta versus o impulso de me isolar, ficar só entre amigos.