Este ano foi o centenário do James Baldwin (1924 - 1987), escritor estadunidense negro e queer, e eu aproveitei pra pegar algumas obras dele pra ler. Escolhi Terra Estranha, lançado em 1962, publicado no Brasil pela Companhia das Letras com tradução de Rogério W. Galindo.
Já era de se imaginar que não seria um livro de leitura leve, visto que o Baldwin é reconhecido por abordar temas conflituosos pra época, como racismo e homossexualidade, sem florear. Porém eu não imaginava que seria uma leitura tão melancólica.
Tudo bem que eu não precisava ter escolhido ler esse livro na praia do Porto da Barra em Salvador, né? Ambiente de descontração, alegre, Sol, cervejinha etc e tal, e eu segurando o choro por causa de uma cena tristíssima do livro. Totalmente desnecessário! Parei ali mesmo e botei Fetiche, do Baco Exu do Blues, pra tocar já que nesse dia eu o assistiria na Concha Acústica.
Mas retomando ao livro, usei o termo "conflituosa" porque em Terra Estranha acompanhamos os conflitos do protagonista Rufus Scott, um baterista negro do subúrbio de Nova Iorque, e todas as pessoas que o cercam como familiares, amigos e relacionamentos amorosos.
Apesar de Rufus ser o protagonista, é através das outras personagens que o conhecemos melhor e, no decorrer da narrativa, conhecemos os dramas de cada uma delas. A exemplo de Vivaldo, irlandês aspirante a escritor e melhor amigo de Rufus, que eventualmente passa a se relacionar com Ida, mulher negra e irmã mais nova de Rufus.
Inúmeros conflitos se dão pelos diferentes marcadores sociais que as personagens têm. Ida pontua várias vezes o impacto que sofre por ser uma mulher negra na sociedade em que vivem. E Vivaldo, apesar de ser bem intencionado, acaba se demonstrando limitado ao não conseguir perceber as nuances de tudo, principalmente por ser branco e possuir outra vivência, ainda que também seja pobre.
“Eu fiquei pensando: eles são negros e eu sou branco, mas as mesmas coisas aconteceram, realmente as mesmas coisas, e como eu faço pra eles saberem disso?” “Mas essas coisas não aconteceram”, ela disse, “com você porque você era branco. Elas simplesmente aconteceram. Mas o que acontece aqui” — e o táxi saiu do parque; ela esticou as mãos, como se o convidasse a olhar — “acontece porque eles são negros. E isso faz diferença.”
Esse é um diálogo do Vivaldo com Cass, uma mulher branca, mãe, casada e dona de casa. Um exemplo bem nítido das limitações do Vivaldo e da compreensão maior da Cass, que interpreta esse papel de mulher madura (ainda que apenas seis anos mais velha que seus amigos) e que, em nome do sucesso do marido e da família, acabou se podando.
Terra Estranha traz uma complexidade nas personagens que me enredou na história. Por mais triste e, por vezes, sem solução que seja, todas as discussões levantadas como relacionamento interracial, homo e bissexualidade, racismo, gênero e classe são bem desenvolvidas e possuem suas gradações e nuances. James Baldwin refletiu e escreveu sobre interseccionalidade mesmo antes desse termo ser cunhado.
Um tema implícito no livro é a solidão nas metrópoles, onde pessoas se sentem muito solitárias mesmo coabitando uma cidade com centenas de milhares de pessoas. Baldwin retratou esse fenômeno da cidade de Nova Iorque na metade do século passado, porém atualmente esse fenômeno se tornou bem mais corriqueiro (ao meu ver, não sei você).
E um dos sintomas dessa solidão, não restrito à Nova Iorque dos anos 50, é a ânsia de encontrar alguém com quem você possa se conectar, quase como uma salvação, para que essa sensação de vazio cesse. E as personagens do livro estão o tempo todo em busca dessa conexão.
“Ele se reclinou um pouco e observou o rosto dela. O rosto dela agora seria, para sempre, mais misterioso e impenetrável do que qualquer rosto estranho. Os rostos de pessoas estranhas não tinham segredos, pois a imaginação não os envolvia em nenhum mistério. Mas o rosto de quem se ama é desconhecido exatamente por estar envolto em uma parte grande de nós mesmos. É um mistério que contém, como todo mistério, a possibilidade do sofrimento.” Trecho de Vivaldo ao se apaixonar por Ida.
Ainda que eu tenha me sentido melancólico durante a leitura e apesar de todas as situações delicadas, a impressão que fiquei após terminar e refletir sobre o livro é que é uma obra sobre o amor. E é aí que me identifiquei.
Como homem com deficiência de trinta anos, habitante de uma metrópole, que, se não nunca, raríssimas vezes pude experimentar o amor romântico, acabei empatizando um pouquinho com cada personagem do livro. Sobretudo porque Manaus tem me dado essa sensação de solidão em meio a multidão, sabe?
O amor não é nem de longe algo simples, ainda mais quando envolve pessoas marginalizadas que por N situações foram vulnerabilizadas e traumatizadas. Cada um dos marcadores sociais que compõe essas pessoas importa e importa muito nessas dinâmicas. Enquanto pessoa de corpo e sexualidade dissidentes eu aprendi a perceber melhor essas coisas, não sem esforço, muito menos sem sofrimento.
Entretanto, isso não é pra desanimar ninguém que seja dissidente também. Todos nós somos dignos de receber amor e, como eu aprendi lendo Tudo Sobre O Amor, da Bell Hooks, amar não é só um verbo do nosso vocabulário, é uma escolha que tem suas consequências. Não parece e nem é fácil, mas vale muito a pena escolher amar.
“Se a gente tentasse ter mais do que — por algum milagre, por um milagre, juro — a gente teve por puro acaso, eu ia acabar me tornando um parasita seu e nós dois íamos murchar. Então o que é que nós dois podemos fazer um pelo outro a não ser simplesmente se amar e ser testemunha um do outro? Será que a gente não tem o direito de querer… mais? Pra que a gente possa se transformar no que a gente realmente é? Você não acha?” Diálogo entre Vivaldo e Eric.
James Baldwin foi uma pessoa que sofreu por e pela falta de amor. E nem por isso desistiu de buscá-lo. Acredito que, no fim das contas, saí feliz de ter podido enfim conhecer uma obra dele e que, depois de quase quarenta anos da sua partida, eu gostaria muito de abraçá-lo afetuosamente. Obras assim é que me fazem ser tão apaixonado pela literatura.
O que andei lendo por aí:
Setembro foi um mês de poucas leituras, mais precisamente duas, porém ambas ótimas! Comecei com Tratado Sobre Tempestades E Outros Fenômenos Extraordinários, da Isabelle Morais. Uma romantasia delicinha demais que era tudo o que eu precisava após leituras tão densas. O melhor de tudo é que essa série sai na Noveletter gratuitamente de forma seriada.
Por fim, li Tese Sobre Uma Domesticação, da Camila Sosa Villada e traduzido por Silvia M. Felix. Um livro que consegue ser visceral e sensível ao mesmo tempo, apresentando a realidade (ainda que ficcional) de uma atriz travesti reconhecidíssima na Argentina que casa com um advogado gay e adotam uma criança. Esse livro tava perdido na minha estante virtual até a Aline me falar que iria ler e peguei pra ler com ela. A melhor coisa que fiz, obrigado amiga!
Coincidentemente ou não, chorei em todos os livros que citei nessa news. Mas vindo de mim, isso provavelmente não quer dizer nada, né?
Obrigado a todes que leram até aqui. Fiquem a vontade pra comentar e trocar ideia comigo.
Um forte abraço e até a próxima!
Ainda não li James Baldwin, seu texto me deu mais vontade!